segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A origem do conto do vigário.



Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe:
«Sr. Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer?
Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.»
«Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as:
«Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil re notas falsas, e disse-lhe:
>
éis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se, se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem.
Houve então a troca de outro olhar. O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho.
Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o recibo, disse, pois queria as coisas todas certas.
E ditou o recibo – um recibo de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, e «estando nós a jantar (e por ali fora com toda a prolixidade frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota, o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente, estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que lembro o feito deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.

Contado por Fernando Pessoa.

(publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, nº 1, de 30/10/1926, com o título de «Um Grande Português». Foi publicado depois no Notícias Ilustrado, 2ª série, Lisboa, 18/08/1929, com o título de «A Origem do Conto do Vigário».

Enviado por "mail" por um amigo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Avieiros - Alves Redol



As palhotas são todas iguais. Quatro prumos metidos no chão e varas de madeira a segurar o telhado coberto pelo carroicil das abertas, que é a melhor palha nascida na vegetação da Lezíria. O material das paredes vem da mesma origem. Apodrece depressa, mas depressa se refaz. E como o vento do norte sopra rijo e traz frio, os pescadores põem na parede desse lado latas velhas e pedaços de madeira que acham nos valados ou as enxurradas trazem no Inverno. Não espanta que pareçam vergonhosas de ali estarem; e acaçapam-se. Entra-se nelas de cabeça baixa como na vida.
Na parede do fundo, no lado do poente, coloca-se a tarimba onde todos dormem. Ao cutelo se são muitos. Onde os pais amam e os filhos aprendem; onde os doentes se queixam, gemendo, e onde os sãos se queixam, calando. Bastam dois tijolos para se arranjar cozinha; chega o chão varrido para se ter assento e mesa. Aos cantos ou penduradas das varas que seguram o tecto, as artes da pesca: as nassas, os botirões e as tarrafas.
O chão ressumbra humidade das marés do Tejo e anda no ar um cheiro a bafio. Também nisso as choupanas são iguais; também não há telhado mais alto a dominar por ali. A rasoira da sorte nivela as vidas e as choupanas. As da rua estreita, as que vieram depois, unem-se às da frente por varas lançadas de telhado para telhado, amparando-se todas para defrontarem os temporais.
Assim os homens se aconchegassem. 

(extraido do Livro: "Avieiros") - Recomendo a leitura ou convido a reler de novo...


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Recordar é viver - A velha nota de 100$00!

É evidente que os tempos eram outros e nós não tínhamos aquilo que hoje temos. De qualquer forma é engraçado ver o que se podia fazer com uma nota de cem escudos... há 40 anos atrás. Hoje... uma nota de cem euros não dava... nem para metade...



Almoçávamos um frango de churrasco no Bom Jardim                     20$00
Víamos uma matinée no Cinema S. Jorge (Música no Coração)      10$00
Bebíamos 2 ginginhas no Rossio                                                           3$00
Comíamos 2 sandes de presunto no Solar dos Presuntos                    6$00
Jantar no Parque Mayer (Sardinhas Assadas)                                    7$50
Assistíamos a uma Revista à Portuguesa no Parque                         16$00
Telefone para dizer que tínhamos perdido o último barco                    1$00
Dormir numa pensão com pequeno-almoço incluído                           25$00
O resto da nota dava para ir de carro eléctrico                                     1$50

Total                                                                                                      100$00

Os tempos são outros, diferentes realidades e o valor do dinheiro também ...


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Farinhas... da minha infância!...

Fizeram parte da minha infância e ficaram-me na memória. Algumas delas sobreviveram até hoje. Sobretudo lembro-me dos brindes que algumas traziam. Eram a felicidade de tantos de nós... Aqui ficam algumas para recordação...


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Estaleiros H. Parry & Son - Cais do Ginjal.



Em 10 de Junho de 1865, António José Sampaio procede à escritura do aluguer de um pedaço de salgado na Praia da Lapa, em Cacilhas, para aí construir um estaleiro de maiores dimensões que aqueles que possuía nas proximidades da Quinta do Outeiro e no lugar da Mutela. Em 17 de Dezembro de 1872, aquele industrial paga à Câmara Municipal de Almada, pelo foro do referido salgado situado em Cacilhas, a importância de vinte e dois mil e quinhentos réis. 


Durante duas décadas, serão construídas e reparadas naquele estaleiro imensas embarcações e navios de tonelagem variável, em madeira e aço, até que em 31 de Dezembro de 1893, o estaleiro é vendido à firma “H. Parry & Son, Lda.”, por noventa contos de réis, confirmando-se a transacção por escritura de 15 de Julho de 1899. 


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Naufragar é preciso?'


TEXTO PUBLICADO NA FOLHA DE SÃO PAULO DESTA TERÇA-FEIRA
texto de João Pereira Coutinho (escritor português)

       Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse? Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?

       A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extraterrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.

       Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil.
Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros. Questão de educação.

       Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: "Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia".

       A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crónicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.

       A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua. Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isto possível? Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.

       Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.

       Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras ("ação", "ótimo" etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermudas e se apaixonou pela garota de Ipanema.

       Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática. Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O "c" de "acção" e o "p" de "óptimo" sinalizam uma correcta pronúncia.

       A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxónicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.

       Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta "desconforto" ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta "desconforto" ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.

       Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem "desconforto" por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.

       Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.
       De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?


Enviado por "mail" por um amigo.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Museu dos objectos esquecidos.


Welcome, artists and aficionados alike, to the brand new home of The Museum of Forgotten Art Supplies — where tools of the trade that have died or have just about died a slow death are cheerfully exhibited. The Museum now features more fun than you deserve... including, of course, hundreds of images of art supply artifacts. All contributed by visitors like you! Your comments about any artifact are always most welcome.

We also welcome you to submit images* of any ghosts of graphic arts past that you feel have bitten the dust or are on their way there.

So, c'mon in and stay awhile... the coffee’s always hot, the waxer’s always on, and the deadline’s always easy!

- Lou Brooks, Doctor of Art Supplies

Esta é a apresentação na página inicial que pode ver em:
http://www.forgottenartsupplies.com/