quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Cinema King, em Lisboa, deverá fechar as portas no domingo.


O cinema King, que integra duas salas – chegou a ter três em funcionamento - para exibição sobretudo de cinema de autor, é gerido desde 1990 pela exibidora Medeia Filmes, de Paulo Branco
O cinema King, em Lisboa, deverá encerrar no domingo e os sete trabalhadores serão colocados noutras duas salas de cinema da mesma exibidora, disse à agência Lusa fonte sindical.
Contactado pela agência Lusa, o exibidor Paulo Branco remeteu esclarecimentos para segunda-feira, numa conferência de imprensa nas instalações do cinema King.
No início de novembro, Paulo Branco tinha explicado à Lusa que a decisão de encerramento do cinema estava em cima da mesa, por causa de uma proposta de atualização do valor da renda por parte do proprietário do espaço, mas que os postos de trabalho estavam garantidos.
Fonte do Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual (SINTTAV) disse hoje que os trabalhadores foram informados que o cinema irá fecharno domingo e que serão recolocados nos cinemas Fonte Nova e Nimas, ambos em Lisboa.
O cinema King, que integra duas salas – chegou a ter três em funcionamento - para exibição sobretudo de cinema de autor, é gerido desde 1990 pela exibidora Medeia Filmes, de Paulo Branco.
A Medeia Filmes detém ainda o cinema Monumental, Nimas e Fonte Nova, todos em Lisboa, e tem programação no Cine Estúdio Teatro do Campo Alegre, no Porto, Auditório Charlot, em Setúbal, no Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz, no Theatro Circo de Braga e no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra.
De acordo com dados do Instituto do Cinema e Audiovisual, até outubro a exibidora Medeia Filmes (incluindo o cinema Fonte Nova) contabilizou 186.367 espetadores.
O Cinema King abriu no espaço onde antes funcionou o Cinema Vox, inaugurado em abril de 1969.
Em 2011, Paulo Branco encerrou os cinemas Saldanha Residence, que funcionavam praticamente frente ao cinema Monumental, deixando nove pessoas sem trabalho.
Este ano, a rede de exibição de cinema em Portugal sofre uma mudança depois da exibidora Socorama ter aberto falência, fechando algumas das salas que detinha (mais de cem) de norte a sul do país, incluindo o cinema Londres, em Lisboa.

Algumas dessas salas de cinema, em particular as que estão localizadas em centros comerciais, têm estado a reabrir gradualmente por iniciativa da exibidora brasileira Orient. (Jornal I – 21.11.2013)

domingo, 17 de novembro de 2013

Morreu Doris Lessing, uma contadora de histórias de intelecto feroz e coração afectuoso.


A escritora britânica Doris Lessing, que recebeu em 2007 o Nobel da Literatura, morreu este domingo aos 94 anos.
Autora de mais de 50 romances e com uma obra diversificada, Lessing foi descrita pela Academia Sueca, que lhe atribuiu o Prémio Nobel da Literatura em 2007, como "uma épica da experiência feminina que, com cepticismo, fogo e poder visionário, sujeitou uma civilização ao escrutínio". 
Doris Tayler, que como escritora veio a adoptar o apelido do seu segundo marido, Lessing, nasceu a 22 de Outubro de 1919 em Kermanshah, no Curdistão iraniano, então integrado no reino da Pérsia. O pai, o capitão Alfred Tayler, tinha perdido uma perna na primeira guerra e conhecera a futura mãe de Doris, a enfermeira Emily McVeagh, no hospital onde recuperava da amputação. Quando Doris nasceu, os pais viviam em Kermanshah, onde o ex-militar conseguira emprego, trabalhando como escriturário num banco.  
Em 1925, a família mudou-se para a colónia britânica da Rodésia do Sul, onde Tayler acreditava poder enriquecer plantando e vendendo milho. Investiu as poupanças na compra de uma grande extensão de terreno, mas o negócio revelou-se ruinoso e a família passou dificuldades. Doris estudou numa escola dominicana, em Salisbúria (hoje Harare, no Zimbabwe), mas abandonou os estudos aos 14 anos, tendo continuado a sua instrução por conta própria, lendo romancistas ingleses e russos.
Um ano depois abandona também a casa paterna e sobrevive trabalhando como enfermeira, criada, telefonista, secretária. Aos 19, casa com Frank Wisdom, um funcionário público, de quem terá dois filhos. O casamento não dura muito.
Em 1943, já divorciada, frequenta as reuniões do Left Book Club, um clube do livro organizado por intelectuais comunistas e adere ao Partido Comunista, então proibido na colónia do Rodésia do Sul. Este período de militância clandestina aparecerá mais tarde reflectido em A Ripple From the Storm(1958), um dos cinco romances do ciclo The Children of Violence, que Lessing inicia em 1952 com A Revoltada (Martha Quest).
É neste meio que conhece o seu segundo marido, o alemão Gottfried Lessing, então dirigente do Partido Comunista da Rodésia. Em A Ripple From the Storm, Lessing chamar-se-á Anton Hesse, e em The Golden Notebook (1962) dará pelo nome de Willi Rodde. O casal divorcia-se em 1949 e Lessing virá a tornar-se embaixador da Alemanha no Uganda, onde é assassinado em 1979, no âmbito de uma revolta contra Idi Amin.


Com dois casamentos falhados atrás, Doris Lessing chega a Londres apenas com o filho que tivera do segundo casamento, Peter – os dois filhos mais velhos tinham ficado com Frank Wisdom –, e durante algum tempo divide um apartamento com uma mulher sul-africana, que tem alguns quartos alugados a prostitutas, cenário que lhe dará material para In Pursuit of the English(1961).
Mas, nesta altura, o objectivo da escritora é publicar o seu romance de estreia, uma história situada na Rodésia e centrada numa mulher casada com um colono branco, pobre e fraco. A protagonista, espécie de Lady Chatterley inter-racial, tem uma aventura com o seu criado africano, Moses, que acabará por a matar. O romance, publicado em 1950 com o título The Grass is Singing(A Erva Canta na edição portuguesa), foi atacadíssimo na Rodésia e na África do Sul. Mesmo no Reino Unido, Doris Lessing só atinge algum sucesso comercial e consagração crítica nos anos 60, com livros como The Golden Notebook, ousada experiência ficcional em torno de uma mulher, Anna Wulf, que procura uma espécie de honestidade radical, que a liberte da hipocrisia e da anestesia emocional que vê na sua geração.
Boa parte da ficção de Lessing tem uma forte dimensão autobiográfica, e são muitos os livros que evocam a suas experiências em África, desde as memórias de infância, até às questões sociais e políticas pelas quais se interessou desde muito nova. O modo como os seus romances e contos descrevem as injustiças raciais e expõem os podres da presença colonial britânica em África fizeram com que fosse oficialmente proibida, em 1956, de entrar na Rodésia do Sul. Por essa altura, Lessing também já se desiludira do comunismo.
Da sua vastíssima bibliografia, que lhe valeu, em 2007, o Prémio Nobel da Literatura, podem destacar-se ainda O Verão antes das Trevas (1973), a pentalogia de ficção científica Canopus em Argos (1979-1983) ou A Boa Terrorista (1985), relato perpassado de ironia da vida de uma militante de esquerda, no qual Lessing mostra como a fronteira entre as convicções ideológicas e a prática terrorista pode tornar-se perigosamente delgada. É ainda autora de uma série de notáveis livros sobre gatos, que misturam ficção com textos de vários géneros.


O seu último livro, Alfred & Emily – os nomes próprios dos pais – saiu em 2008 e prosseguia um projecto autobiográfico iniciado com Under My Skin(1994) e Walking in the Shade (1997).
Mesmo antes de receber o Nobel, Lessing já recebera vários prémios, e tentaram mesmo dar-lhe o título de “dama”, ou, por extenso, dama do Império Britânico (dame of the British Empire), honra que recusou, argumentando que não existia qualquer império britânico,
Também não se mostrou particularmente agradecida pelo Nobel. Numa entrevista ao New York Times, em 2008, diz que “os suecos não têm uma grande tradição literária, e por isso tentam aproveitar ao máximo o Nobel”. E ironiza com a declaração do júri, que a considerou uma “épica da experiência feminina”. Afirmando não se rever no retrato, diz que imagina o sueco responsável pela frase a pensar para si próprio: “O que é que raio havemos de dizer desta? Ainda por cima não gosta que lhe chamem feminista. E então escrevinharam aquilo”.
Doris Lessing tinha 88 anos quando recebeu o Nobel da Literatura. O prémio nunca tinha sido atribuído a um escritor tão idoso. “Como não podiam dá-lo a alguém que já tivesse morrido, devem ter achado que era melhor darem-mo logo, antes que eu batesse a bota”, comentaria mais tarde.
Charlye Redmayne, da editora HarperCollins, descreve Lessing como “uma brilhante contadora de histórias com um intelecto feroz e um coração afectuoso e que não tinha medo de lutar por aquilo em que acreditava”.

O escritor sul-africano J.M. Coetzee, que conhece bem o mundo que moldou a obra de Lessing e que a precedeu quatro anos na lista dos prémios Nobel da Literatura, chamou-lhe "uma das maiores romancistas visionárias do nosso tempo". (Jornal Público – 17.11.2013)

domingo, 10 de novembro de 2013

A Gaiola Dourada passa no MoMa de Nova Iorque em 2014, diz Ruben Alves.


O filme A Gaiola Dourada vai ser exibido em Março ou Abril do próximo ano no Museu de Arte Moderna (MoMa) de Nova Iorque, disse este sábado em Bruxelas o realizador, Ruben Alves.
O realizador luso-descendente, residente em França e cujo filme é um êxito de bilheteira e já estreou em mais de dez países, disse à agência Lusa, à margem da iniciativa Matiné Pensante, que o filme será exibido no MoMa “entre o final de Março e o início de Abril”, no âmbito de uma semana dedicada ao tema da emigração.

A segunda edição da Matiné Pensante, um conjunto de conferências sobre a cultura e as novas tendências em Portugal, juntou este sábado em Bruxelas cerca de 200 pessoas, tendo como oradores convidados o comediante Nilton, o chefe de cozinha José Avillez ou o realizador Ruben Alves, entre outros. (Jornal Público – 10.11.2013)

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O homem que tinha em casa um museu de arte moderna.


Cornelius Gurlitt mantinha num andar de Munique 1400 obras de arte, incluindo telas desconhecidas de Chagall ou Matisse. As autoridades alemãs descobriram o seu tesouro, boa parte dele oriundo das pilhagens nazis, já há dois anos, mas não disseram nada
As autoridades alemãs anunciaram ontem, em conferência de imprensa, que as 1400 obras de arte encontradas em 2011 num apartamento de Munique incluem pinturas desconhecidas de Henri Matisse, Marc Chagall e Otto Dix. Meike Hoffmann, encarregada pelo Ministério Público alemão de catalogar o achado, mostrou aos jornalistas presentes imagens de uma pintura ignorada de Matisse, de um auto-retrato de Dix e ainda de uma cena alegórica de Chagall, datável de meados dos anos 20, à qual a especialista atribuiu "particular importância para a história da arte".
(Chagall)

O encontro com a imprensa foi convocado após a revista alemã Focus ter revelado que as autoridades do seu país mantiveram em segredo durante dois anos a apreensão de um vastíssimo lote de arte moderna, boa parte dela saqueada durante o período nazi, que se amontoava num modesto apartamento de Munique. O andar é propriedade de Cornelius Gurlitt, filho de um célebre negociante de arte, Hildebrand Gurlitt, que ajudou o regime de Hitler a vender no estrangeiro a arte saqueada dos museus da Europa e extorquida aos coleccionadores judeus. Após a morte do pai, em 1956, Cornelius, que tem hoje 79 anos, manteve a colecção de arte no seu apartamento e foi vendendo ocasionalmente algumas peças quando precisava de dinheiro.
O procurador Reinhard Nemetz precisou ontem aos jornalistas que o conjunto abrange 1401 peças, incluindo pinturas a óleo, aguarelas e desenhos de artistas como Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, Paul Klee, Emil Nolde, Franz Marc ou Max Beckmann, para citar apenas alguns dos mais conhecidos. Só 121 telas mantêm a respectiva moldura, acrescentou Nemetz, mas as restantes, embora partilhassem o andar de Gurlitt com uma insólita quantidade de latas de comida fora de prazo, estão devidamente acondicionadas e em bom estado de conservação.
Segundo a Focus, o conjunto valerá mil milhões de euros. E se algumas destas pinturas eram até agora ignoradas pelos historiadores de arte, muitas não só são bem conhecidas, como têm sido activamente procuradas. Já foram identificadas 200 obras para as quais há mandados internacionais, garante a Focus.
"Quando voltamos a ver estas obras, desaparecidas há tanto tempo e dadas como destruídas, a sensação é extraordinariamente gratificante", disse ontem Hoffmann, que se congratulou também pelo bom estado geral das peças. Gurlitt teve o cuidado de as manter em aposentos escurecidos, protegidas da luz do sol.
Uma pintura de Dürer
A arte da primeira metade do século XX é o grosso do conjunto, mas o apartamento de Gurlitt, no quinto andar de um prédio modernista que já conheceu melhores dias, conservava uma tela quinhentista de Albrecht Dürer e obras de artistas de várias outras épocas, de Canaletto a Courbet, Renoir ou Toulouse-Lautrec.
Nem todas as obras foram roubadas durante o nazismo, salientou ontem o procurador Reinhard Nemetz, que anunciou ainda que as autoridades alemãs não irão divulgar imagens das pinturas na Internet, como tem sido reclamado desde que a Focus revelou esta história. "A situação legal das obras é muito complexa e não queremos um cenário em que tenhamos de lidar com dez reivindicações diferentes de uma mesma pintura", diz Nemetz.
O argumento não convence os herdeiros de coleccionadores judeus espoliados pelos nazis e a decisão já foi também criticada por um conhecido advogado berlinense especialista em reivindicações de arte roubada, Peter Raue, que a considera "um escândalo". David Rowland, um advogado nova-iorquino que representa os herdeiros do crítico e coleccionador Curt Glaser, lamenta: "Sem uma lista das obras, não podemos fazer nada."
Entre os candidatos a reclamar a propriedade de algumas destas peças conta-se a jornalista Anne Sinclair, ex-mulher do político francês Dominique Strauss-Kahn e neta do famoso coleccionador francês Paul Rosenberg. Uma das telas de Matisse que Gurlitt conservava veio garantidamente da colecção de Rosenberg, pilhada pelos nazis.
Uma associação judaica criada para ajudar as vítimas dos nazis a negociar restituições de bens e compensações por danos, a Conference on Jewish Material Claims against Germany, já criticou a Alemanha por ter demorado tanto tempo a revelar a descoberta destas obras. Citado pelo jornal inglêsGuardian, um porta-voz da instituição, Ruediger Mahlo, defendeu que colecções privadas como esta sob o Terceiro Reich eram quase sempre constituídas por obras que tinham pertencido a judeus. Mahlo diz que "não se pode continuar, como neste caso", a seguir uma prática que "corresponde moralmente ao encobrimento de bens roubados".
Um nazi com avó judia
A razão pela qual se acreditava que muitas destas obras tinham sido destruídas prende-se com a estranha história de Hildebrand Gurlitt. O pai de Cornelius, nascido numa família ligada às artes, era já um prestigiado historiador e coleccionador de arte quando os nazis subiram ao poder em 1933. Com uma avó materna judia e um reconhecido gosto pela arte moderna, tinha tudo para ser perseguido pelos nazis. E foi. O regime destituiu-o dos cargos públicos e associativos que desempenhava, mas, quando precisou de alguém que tivesse contactos privilegiados com coleccionadores dentro e fora da Alemanha nazi, recorreu a ele.
Foi recrutado pelo próprio Goebbels para vender a arte moderna considerada "degenerada". E fê-lo com tal empenhamento que lhe foi oferecida a direcção do grande museu de arte germânica que Hitler projectava abrir em Linz, na Áustria, onde vivera.
Parte das obras que chegaram às mãos de Hildebrand Gurlitt vieram directamente da exposição Arte Degenerada (Entartene Kunst) que o regime organizou em 1937. Muitas outras foram adquiridas por Gurlitt, a preços irrisórios, a judeus que tentavam comprar o seu bilhete de saída do terror nazi.
Se é notável que o neto de uma judia tenha subido tão alto no regime, não é menos notável que Gurlitt tenha atravessado incólume o processo de desnazificação no pós-guerra. Desta vez, a avó judia funcionou como um trunfo e permitiu-lhe declarar-se como vítima dos nazis aos interrogadores americanos. O coleccionador convenceu-os ainda de que toda a sua colecção de arte fora destruída em 1945 nos bombardeamentos de Dresden.
Tendo em conta a notoriedade de Hildebrand Gurlitt, não deixa de ser surpreendente que não tenha sido mais investigado após a guerra, como é de estranhar que os seus herdeiros possam ter mantido a sua colecção de arte a salvo e ignorada durante mais de meio século, ainda por cima vendendo regularmente algumas peças.
Autorizado a retomar a profissão de negociante de arte, o coleccionador veio a morrer em 1956 num acidente de viação, deixando a colecção à mulher, Helene, que por sua morte a deixou ao filho de ambos. A galeria suíça Kornfeld, que negoceia com Cornelius Gurlitt desde o início dos anos 90, defende-se da acusação de más práticas, alegando precisamente que se trata de um mero "caso de herança não declarada".
Tramado pelo fisco
Se não for possível encontrar os proprietários legítimos de algumas destas 1400 obras, como é provável que aconteça, não é de excluir que, tendo muitas delas sido compradas de acordo com a lei, mesmo que a preços irrisórios e em circunstâncias vergonhosas, acabem por regressar à posse de Cornelius Gurlitt.
O filho de Hildebrand Gurlitt é descrito pelas autoridades como um idoso um pouco lunático e que leva uma vida de eremita. Tendo em conta que conseguiu guardar segredo durante mais de meio século da existência de um tesouro estimado em mil milhões de euros, chega a ser anedótico pensar que foi apanhado porque andava com nove mil euros no bolso. Numa tarde de Setembro de 2010, alguns fiscais alfandegários alemães entraram num comboio que vinha de Zurique e se destinava a Munique, na Baviera. Dado que a banca suíça é ilegalmente utilizada por alemães que tentam fugir aos impostos, as inspecções de rotina são frequentes, mas a dessa tarde apanhou na rede o mais improvável dos peixes.
Quando pediram a documentação a um homem de cabelo branco, este sacou de um passaporte austríaco que o identificava como sendo Rolf Nikolaus Cornelius Gurlitt, nascido em Hamburgo, em 1933, e residente em Salzburgo. Explicou que fora à Suíça em negócios e que fizera uma transacção na galeria Kornfeld, em Berna, e mostrou um envelope contendo nove mil euros - mil euros abaixo do limite a partir do qual teria de declarar a verba na fronteira.
Um dos fiscais contou à Focus que o homem "parecia nervoso" e que resolveram investigá-lo. Não tardaram a descobrir que não vivia em Salzburgo, que não estava registado na polícia, como é obrigatório na Alemanha, não tinha número de contribuinte, não recebia nenhuma pensão e não dispunha de qualquer seguro. "Era um homem que não existia", resumiu o mesmo fiscal.
A vigilância prosseguiu, até que, em Fevereiro de 2011, os investigadores encarregados do caso obtiveram um mandado para revistar o seu apartamento em Munique, onde esperavam encontrar provas de depósitos ilegais e fuga ao fisco. E descobriram, de facto, a caderneta de uma conta bancária com várias centenas de milhares de euros, produto das ocasionais vendas de arte que Gurlitt ia fazendo para se financiar.
Mas encontraram também 1401 obras de arte atrás de uma barreira de latas de comida em decomposição, que já estavam fora do prazo nos anos 80. E se tivessem sido mais rápidos, ainda teriam apanhado uma tela de Max Beckmann, intitulada Lion Tamer, que Gurlitt vendeu a uma leiloeira de Colónia por 864 mil euros.
A convicção de que esta venda ocorrera já depois de a colecção ter sido confiscada e guardada num depósito alfandegário em Munique levou os jornais alemães a especular que Gurlitt poderia ter outros depósitos secretos. Mas as autoridades já vieram garantir que a transacção é anterior à busca e que não há motivos para crer que existam mais obras de arte escondidas noutros locais.

Cornelius Gurlitt pode vir a ser acusado de evasão fiscal, lavagem de dinheiro e outros delitos, mas o procurador Nemetz explicou ontem que não existiam "suspeitas de um crime que pudesse justificar a sua detenção". E acrescentou que se desconhece "o actual paradeiro" de Cornelius Gurlitt. (Jornal Público – 06.11.2013)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Morreu Zé da Guiné, ícone da boémia e cultura dos anos 1980.


Morreu na sexta-feira Zé da Guiné, personalidade marcante da vida nocturna e cultural da Lisboa dos anos 1980. Sofria há mais de dez anos de uma doença degenerativa do foro neurológico, impeditiva de qualquer actividade. Morreu durante a noite, no Hospital de São José, em Lisboa.
Nos últimos anos, passava por dificuldades materiais, tendo-se avolumado as iniciativas públicas, promovidas por amigos artistas, cineastas, jornalistas ou músicos em seu auxílio e foi produzido o documentário Zé da Guiné – Crónica de Um Africano em Lisboa, da autoria de José Manuel S. Lopes, que reflectia a sua vida, desde a chegada a Lisboa, nos anos 1970, passando pela sua relevância na fervilhante actividade cultural e na vida boémia dos anos 1980.
O realizador lembra o amigo como alguém que "teve a particularidade de ter modificado os hábitos de Lisboa, tanto na forma de estar como de usufruir da cidade". "Foi um precursor e arrastou outras pessoas nesse movimento", diz ao PÚBLICO. "Não consigo encontrar outra pessoa como ele: inovador, de espírito aberto, aventureiro e, ao mesmo tempo, cuidadoso, amigo e óptimo em relações públicas." Durante 14 anos, continua, lutou contra a doença, esclerose lateral amiotrófica, a mesma que vitimou Zeca Afonso, "o que revela a sua grande capacidade de luta e resistência."
Como escreveu na altura da homenagem Miguel Esteves Cardoso numa crónica no PÚBLICO: "Zé da Guiné é um grande artista. Não foi só uma inspiração, um exemplo e um catalisador, embora também fosse essas coisas. Criou ambientes e criou mentalidades. Abriu caminhos e diversões. A noite de Lisboa era fechada, triste, mesquinha e clandestina antes do Zé e do Manuel Reis [Frágil/Lux], cada um à maneira dele. Contra todas as más vontades, burocracias, pessimismos e letargias, estes dois artistas públicos conseguiram abri-la, alegrá-la, engrandecê-la e mergulhá-la no presente."

Natural da Guiné-Bissau, onde nasceu a 4 de Janeiro de 1959, José Osaldo Barbosa teve uma passagem breve pela guerrilha na luta pela libertação. Chegou a Lisboa nos anos 70, depois do 25 de Abril.
No final dessa década, foi ele um dos primeiros a aventurar-se no território de prostitutas e de má fama que era então o Bairro Alto, abrindo o espaço Souk. Mais tarde, viria a embarcar no projecto Rock House (mais tarde, Juke Box), assumindo várias funções, entre elas a de porteiro, participando na emergência do Bairro Alto como o lugar por excelência de afirmação da Lisboa cultural dos anos 1980.
Era conhecido de todos, artistas, músicos, cineastas ou jornalistas. De alguma forma, era um símbolo de uma cidade que, depois do 25 de Abril, se queria abrir à modernidade e ao exterior. Não é por acaso que muitas das publicações de referência internacionais da época – como a revista inglesa The Face –, quando abordavam as dinâmicas culturais em ligação com as actividades nocturnas da época, o procuravam.
Uma das suas paixões era a moda, tendo sido uma personalidade inspiradora, assistindo à emergência da geração que consolidou a moda em Portugal através de iniciativas como as Manobras de Maio.
Mas o projecto onde se envolveu e que talvez mais marcas deixou foi as Noites Longas, ao largo do Conde Barão, em Santos, num palacete do século XVI, que mais tarde viria a albergar o B. Leza e que hoje se encontra desactivado. Ideia partilhada com Hernâni Miguel, viria a transformar-se numa das experiências mais cosmopolitas da época.

A meio dos anos 1980, era ali que a Lisboa artística se misturava, até de manhã, com a Lisboa castiça do Cais do Sodré e do mercado da Ribeira e com a Lisboa do roteiro das discotecas africanas. Depois dessa aventura, surgiram outras, como a abertura, já nos anos 1990, do Be Bop, no Bairro Alto, onde se ouvia jazz, a sua grande paixão. (Jornal Público – 01.11.2013)