quarta-feira, 25 de junho de 2014

Morreu Eli Wallach, o vilão de westerns formado no Actors Studio.


O teatro era a verdadeira “casa” de um actor mais recordado pelos seus papéis de vilão e por uma cena de dança com Marilyn Monroe.
"Parece que tenho uma vida dupla", disse em tempos Eli Wallach. "No teatro, sou o homenzinho, ou o homem irritado, ou o homem incompreendido. No cinema, passo a vida a ser escolhido para os papéis de mau."
Não é por isso surpresa que Wallach, falecido esta terça-feira aos 98 anos de idade, seja mais recordado pelos vilões que interpretou em dois dos filmes mais icónicos da década de 1960: Os Sete Magníficos (1960), versão westerndos Sete Samurais de Akira Kurosawa dirigida por John Sturges, e O Bom, o Mau e o Vilão (1966), terceiro filme da trilogia de westerns-spaghetti de Sergio Leone. Mas é um destino, no mínimo, irónico para aquele que era um dos últimos nomes ainda vivos da “primeira fornada” formada na lendária escola de representação nova-iorquina do Actors Studio, que revolucionou o cinema e o teatro americanos no período do pós-II Guerra Mundial.
Era no teatro que o actor nova-iorquino, nascido no bairro de Brooklyn em 1915 e filho único de emigrantes judeus polacos, se sentia mais à vontade. Embora tenha continuado a filmar quase até ao fim da sua vida - os seus últimos trabalhos de nota foram O Escritor Fantasma de Roman Polanski eWall Street: O Dinheiro Nunca Dorme de Oliver Stone, em 2010 - foi no teatro, do qual se retirou de vez em 1997, que construiu a sua carreira. Trabalhou repetidamente com a sua mulher, a também actriz Anne Jackson, que conheceu nos palcos em 1946 e com quem casou dois anos depois. Entre os muitos autores que Wallach representou contam-se Tennessee Williams (vencendo o Tony por uma produção de A Rosa Tatuada em 1951), Jean Anouilh, Eugène Ionesco ou Tom Stoppard.
O “camaleão por excelência”
Wallach foi um dos primeiros alunos da escola de representação do Actors Studio, fundado em 1947 e gerido a partir de 1951 por Lee Strasberg. Os seus colegas de curso chamavam-se Marlon Brando, Montgomery Clift e Sidney Lumet. E estreou-se no cinema precisamente sob o signo do teatro: foi em Baby Doll(1956), adaptação de Tennessee Williams sob o comando de Elia Kazan, ele próprio um dos fundadores da escola.
Entre as quase duas centenas de filmes e produções televisivas em que entrou, muitos lembrar-se-ão particularmente de Os Inadaptados (1961), realizado por John Huston e escrito pelo dramaturgo Arthur Miller, com Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift nos papéis principais. A cena em que Wallach dança com Marilyn, de quem era amigo de longa data e que teria aqui a sua última interpretação em vida, ficou célebre. Wallach participou também em inúmeras séries televisivas – como Cidade Nua, Batman, onde interpretou (lá está...) o vilão Mr. Freeze, ou mais recentemente Nurse Jackie- e no último filme da trilogia O Padrinho de Francis Ford Coppola (1990).
Eli Wallach nunca foi nomeado para um Óscar, mas a Academia das Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood reconheceu a sua carreira no final de 2010, entregando-lhe o Óscar honorário pela “desenvoltura inata com que interpretou uma variedade de personagens, ao mesmo tempo que deixou uma marca inimitável em cada papel”. Chamou-lhe então “um camaleão por excelência”. O “camaleão por excelência” era algo que vinha da sua extensa experiência teatral - e Wallach nunca escondeu que, para um actor de composição como ele, "o cinema era apenas um meio para chegar a um fim", como disse numa entrevista de 1973 citada pelo New York Times. "Vou montar a cavalo para Espanha durante dez semanas e regresso com uma almofada financeira suficiente para poder montar uma peça."

Mas a verdade é que, se Wallach e Anne Jackson se tornaram no “primeiro casal” do teatro americano nas décadas de 1960 e 1970, foram mesmo os papéis de vilão que fizeram o nome do actor no grande écrã. Faltou-lhe “aquele” papel que o atirasse para uma carreira de primeira grandeza – mas a verdade é que o actor também nunca o terá querido. Como o comprova um daqueles fait-divers que muitas vezes definem uma personalidade: primeira escolha do realizador Fred Zinnemann para um papel secundário em Até à Eternidade (1953), Eli Wallach optou antes por aceitar o convite para uma nova peça de Tennessee Williams encenada por Elia Kazan, Camino Real. Em seu lugar ficou Frank Sinatra, que ganhou o Óscar de melhor actor secundário. (Jornal Público – 25.06.2014)

sábado, 21 de junho de 2014

A energia da inquietação.


Festa, alegria, violência, futuro, comprometimento, fragilidade. São as palavras e os significados que envolvem Artistas comprometidos? Talvez, a colectiva apresentada na Gulbenkian no âmbito do programa Próximo Futuro
Fundação Gulbenkian. Está cansado – “escapou” há minutos do calor da rua – mas visivelmente satisfeito e saúda os artistas que encontra pelo caminho, interrompendo-se aqui e ali para olhar a montagem final das obras. “Artistas comprometidos? Talvez”, a exposição que comissaria, no âmbito do programaPróximo Futuro, está quase pronta. A meio da sala, o artista moçambicano Celestino Mudaulane termina a sua pintura mural e ao fundo a instalação de Wum Botha parece concluída. Nas paredes, já se exibem as fotografias do franco-argelino Bruno Boudjelal, os estranhos e coloridos “retratos” do sul-africano Athi-Patra Ruga e a pintura do brasileiro Luiz Zerbini. No chão, algumas obras esperam a sua vez. Como já se tornou, presume-se, evidente, os artistas participantes nesta colectiva (ao todo são 21) não se subsumem a uma geografia. Há-os de diferentes continentes e países, o que denota uma coerência com os fins do programa Próximo Futuro e, neste, com a actividade de curadoria de António Pinto Ribeiro. Mas o que dizer do título? Que sentido tem a palavra “comprometidos”?
“Há aqui dois tipos de comprometimento”, diz o curador. “Um comprometimento com o legado artístico, com a arte, que considero profundo. E uma atitude que no meio das maiores vicissitudes, das maiores catástrofes, encontra espaço para a expressão de uma certa alegria, de uma ideia de festividade. Não se trata de uma regra, mas é substancial. É uma energia que os artistas canalizam para a expressão artística, para a criação das suas obras”. Alguns trabalhos tornam presente esse energia, Veja-se o tromp-l’oeilque espreita da pintura de Luiz Zerbini, a indeterminação colorida dos seres de Athi-Patra Ruga, as luzes e o movimento da instalação de Wum Botha. A cor e a diversidade de linguagens são aspectos que ressaltam e envolvem o visitante. E a par de pinturas, de esculturas e instalações, encontram-se filmes, pinturas murais, referências a cidades ou a lugares específicos (a costa do Norte de África, o Mediterrâneo, Maputo, as ruas de Joanesburgo), inclusive a outras artes (a BD). Como se articula toda esta diversidade, e o comprometimento que a atravessa, com a possibilidade de uma intervenção? “Nas conversas com os artistas, houve sempre um debate em torno do papel interventivo, quer da obra, quer do artista como cidadão. Que implicações surgem na produção contemporânea e na relação dessa produção com os cidadãos? As obras e actividades dos artistas desta exposição não são militantes ou panfletárias, mas partem de um programa individual, pessoal”.
Fragilizar a mediação
Algumas estratégias que ilustram a complexidade, bem como a singularidade, desses programas podem ser: evocar ou documentar um período negro da história de um país (é o que fazem o sul-africano Conrad Botes ou a guatemalteca Sandra Monterroso), confrontar a violência de uma sociedade (nas pinturas de Celestino Mudaulane, na proposta da artista brasileira Berna Reale) ou explorar narrativas da história política (Bouchra Khalili). Na maioria destes trabalhos, o que se evidencia não será um gesto de denúncia, menos ainda de activismo, mas uma inquietação provocada pelas condições sociais e políticas do real; inquietação que só se mostra, só emerge se transfigurada pela arte. Repare-se nas imagens de Bruno Boudjelal. Ao longe, parecem pinturas de paisagens e são paisagens o que vemos representado. Um olhar mais aproximado, permite descobrir outra coisa: são fotografias, tomadas, ofuscadas pela luz, da costa argelina e da costa da Europa do Sul que o artista fez durante uma série de viagens. A alusão às travessias do Mediterrâneo por jovens africanos que tentam chegar à Europa vai-se revelando. Escreve o artista no catálogo: “Virando as costas a África, diante das margens europeias de Espanha ou Itália, regressei aos locais onde embarcam estes migrantes clandestinos. Estas paisagens brancas fixam numa mesma fotografia o encandeamento da luz, o desaparecimento da paisagem e as construções da memória.”
Apesar da articulação entre temas próximos ou comuns, refira-se que grande parte dos artistas não se conhecia pessoalmente. “Não houve colaboração entre eles, mas existiu um processo de debate interno”, nota Pinto Ribeiro. “Houve conversas, leram-se textos, houve reflexão. Verificou-se um processo de partilha, com propostas e contra-propostas, trocas de imagens. E mostrei-lhes a história da exposição anterior, para terem uma perspectiva com que se pudessem relacionar”. O curador, embora participante, assumiu a fragilização da sua função, atitude que, no seu entender, modera a autoridade excessiva do mediador. Podemos intuir, na opção, uma crítica ao mundo da curadoria? “É hoje uma evidência o excesso de mediação entre os artistas, o público e as instituições. E isso tem uma razão de fundo que é grande diversidade e a ausência de cânones da arte contemporânea. Cabe muito do poder de selecção aos curadores. Mas o problema não são os curadores, e sim o excesso da sua influência e autoridade, que vai personificando um star-system”. A este problema, acrescem outros obstáculos que desvirtuam a produção artística: “Há muitas situações de promiscuidade entre curadores, responsáveis por colecções e críticos. E isso não é nada saudável para os artistas e as programações”.
Comprometimento com o futuro
Dos participantes em Artistas comprometidos? Talvez só se contam dois nomes portugueses: Pedro Barateiro e João Ferro Martins. Que conclusões se podem tirar desta parca representação? Que a inquietação que anima esta colectiva não é partilhada pela actual arte portuguesa? António Pinto Ribeiro admite que sim. “A responsabilidade não é, contudo, dos artistas. Eles estão inseridos num processo histórico onde o mercado e as galerias se lhes impõem, não permitindo outro tipo de orientações. Também não encontro essa inquietação na arte que se torna panfletária ou naïve. Há uma falta de comprometimento radical. O Pedro Barateiro e o João Ferro Marins, para mim, têm esse comprometimento com o futuro, com o devir, mas por razões que terão a ver com os limites de produção, tendem a fazer obras minimais, com escalas mais reduzidas”.
Uma escala reduzida é algo que não se encontra emTeoria, peça de Eduardo T. Basualdo, uma enorme rocha negra, suspensa sobre o foyer da Fundação. A sua localização inusitada (parece rasar as cabeças dos visitantes) e a sua queda latente (um fio segura-a ao tecto) interpelam quem passa. Primeiro, o receio face à possibilidade de uma catástrofe, logo a seguir o encontro com uma presença surreal, fantasiosa, plena de ilusão. Não é ferro ou granito o que a constitui, mas folha de alumínio. Entre a aparição violenta e a ironia, testemunha-se uma transfiguração semelhante à realizada pelas imagens de Bruno Boudjelal, com a diferença de que aqui é a relação entre os homens e os objectos, e menos entre os homens e os lugares, aquilo que o artista vem interrogar.

Regresse-se à sala principal. Acolhe filmes da autoria de Bouchra Khalili, de Miguel Jara, de Pedro Barateiro e Solon Ribeiro. Todos lidam com questões distintas, quanto muito contíguas: a performance, a montagem, a memória do cinema, a animação, a documentação. Em comum, sobressai um envolvimento com a cultura das imagens e os arquivos que ela vai construindo. Esse é também um aspecto relevante do projecto. Mas há outro que surge mais interpelador. A aparição da pintura mural, nas propostas de Conrad Botes, vindo da BD experimental, de Celestino Mudaulane (que tem apresentado desenhos e esculturas em edifícios devolutos de Maputo) e do mexicano Demián Flores, que retoma um “movimento” que marcou a história da arte do seu país. Pergunta “provocadora”: por que não levar estes trabalhos para o exterior, para o interior da cidade? “Isso seria um gesto de falsa rebeldia”, responde o curador. “Não faz sentido, neste contexto instalar e pintar um muro numa rua da cidade. Seria uma situação de extrema hipocrisia. Esta é uma exposição que decorre numa instituição. É mais transparente e honesto propor essas obras no interior da exposição, com os limites possíveis, do que ir para os subúrbios”. A presença ameaçadora de “Teoria”, do Eduardo T. Basualdo, sobre as nossas cabeças, no foyer da Fundação, parece dar razão ao curador. (Jornal Público)

domingo, 15 de junho de 2014

Encontramo-nos mais logo à porta do Cinema Ideal?


A abertura do Ideal anuncia-se como “o primeiro acontecimento da rentrée”. O cinema de bairro – o mais antigo de Lisboa – quer ser um espaço de encontro em torno dos filmes, mas também do prazer de ir a uma sala de cinema.
Hão-de vir os que gostam de ver cinema e de falar sobre o cinema que vêem, os que perderam em Lisboa um lugar que seja um ponto de encontro, os que têm saudades dos cinemas de bairro, e os que vivem no bairro e ainda se recordam do velho Ideal; hão-de vir os que cresceram a ver os clássicos, e os que cresceram no tempo em que a televisão já não mostra os clássicos, os que enchem os festivais de cinema, os que gostam de filmes portugueses, os que não encontram nas salas os filmes que querem ver; hão-de vir os que gostam dos westerns de John Ford, e os que querem rever Hitchcock, os fãs do cinema do Irão ou de Taiwan, e os que querem simplesmente descobrir filmes novos. Hão-de vir os que gostam de salas de cinema.
O encontro está marcado para o início da rentrée, no novo Cinema Ideal, Rua do Loreto números 15 e 17, Lisboa, entre o Camões e a Bica. Hão-de vir muitos, espera Pedro Borges, produtor e distribuidor da Midas Filmes, o impulsionador desta reabertura da mais antiga sala de cinema da capital. E virão, acredita, porque um espaço como este faz falta, e porque, ao contrário do que se pensa, continua a haver público para ver cinema em sala. 
Por enquanto, a sala do Ideal, no edifício da Casa da Imprensa, que é senhoria do espaço e investidora do projecto através da indemnização paga aos anteriores inquilinos, ainda está em obras, com operários a entrar e a sair, carregando tábuas e baldes. 
O projecto de recuperação (um investimento de 500 mil euros, incluindo ecrã, projector, equipamento de som) é do arquitecto José Neves, Prémio Secil de Arquitectura 2012, e a programação será da responsabilidade da Associação Cultural Cinema Ideal – um grupo de perto de 30 pessoas, entre as quais realizadores, actores e produtores, que terá a sua sede no primeiro andar do mesmo edifício, espaço que se abrirá também ao público. 
“Queremos ser o primeiro acontecimento da rentrée”, diz Pedro Borges. Inicialmente pensou-se abrir na Primavera, mas não foi possível, e a data prevista agora é final de Agosto, início de Setembro. A programação de arranque, essa já está quase toda definida. “Por uma série de coincidências, vamos ter muito cinema português até ao final do ano: o filme do Joaquim Pinto, E Agora? Lembra-me, a estreia do último do Paulo Rocha (1935-2012),Se Eu Fosse Ladrão, Roubava, e a reposição dos dois primeiros, Verdes Anos(1963) e Mudar de Vida (1966), Os Maias do João Botelho, que tem uma versão do realizador com três horas que ele gostaria que nós estreássemos; o Pedro Costa que está a acabar um filme, o João Canijo, a acabar um documentário, o João Salaviza, enfim, uma série de realizadores de cujos trabalhos gostamos e que vamos estrear." 
Uma sala, muitos filmes
Mas esta sala com foyer, plateia e balcão, como os antigos cinemas de bairro, quer ser “um multiplex”. Pedro Borges explica: “A ideia é trabalhar do meio-dia às duas da manhã e combinar sempre pelo menos dois filmes em exibição para públicos diferentes, alternando as sessões." A reposição de um clássico pode alternar com a estreia de um filme de um novo realizador, por exemplo – “é importante separar o cinema da ideia de novidade; como nas outras artes deve ver-se o que foi feito agora como o que foi feito há 20 anos, ou há 70."  
Ou então podem combinar-se filmes que façam sentido juntos por algum motivo. “Imagine-se que o Pedro Costa diz que quando estrear o filme dele gostaria de ter determinado filme ao mesmo tempo. As sugestões podem vir dos realizadores ou serem simplesmente coisas que nós achamos que fazem sentido." Pode acontecer que venha o próprio realizador explicar porque acha aquele filme importante, ou que venham pessoas contar outras histórias. “Com o filme do Joaquim Pinto vamos ter isso – pessoas que vêm falar da sua relação com o filme. Quando fizermos a estreia e as reposições do Paulo Rocha, gostava que viessem pessoas que assistiram à estreia dos Verdes Anos em 1963 no São Luiz para dizerem como vêem o filme hoje. São coisas que noutros países se fazem regulamente e que cá se perderam muito."
Mas o que se perdeu não foi, sobretudo, o público do cinema? Não, diz Pedro Borges. O que se perdeu – por razões várias, nomeadamente a especulação imobiliária em vários espaços que eram ocupados por cinemas – foi uma certa forma de ir ao cinema. “A ida ao cinema nunca foi apenas para ver filmes. Cinemas de bairro como este eram onde as pessoas se encontravam regulamente, onde conviviam. Depois, noutras zonas da cidade, nas Avenidas Novas por exemplo, as pessoas iam também para ver aqueles edifícios. Isso perdeu-se a partir do momento em que as salas passaram a ser todas iguais, independentemente do centro comercial em que estão."

A ambição é que o Cinema Ideal tenha uma identidade própria. E, no entanto, já houve cinemas com essa identidade – como o Quarteto, ou o King (ao qual Pedro Borges esteve também ligado como exibidor) – que tiveram de fechar as portas. Nestes casos, o público foi desaparecendo devido a uma certa incapacidade de renovação. Relativamente ao Quarteto, Pedro Borges lembra que um dos grandes problemas eram “as condições físicas”. “O grau de exigência das pessoas aumentou muito. Em 1990 já ninguém queria ver os filmes nas condições em que se viam lá."
Reconhece que seria um grande risco abrir uma sala hoje num bairro envelhecido e com pouca vida. Mas esse problema não existe no Camões, por onde passam os mais variados públicos a diferentes horas do dia. “Lisboa não tem comparação com, já não falo de capitais, mas cidades médias em Itália, França, Alemanha, Holanda, que têm uma oferta muito maior deste género de salas”. Para a criação de um cinema com identidade, Pedro Borges conta com o trabalho de José Neves, que, além de conhecer bem o bairro — é nele que vive e trabalha —, tem falado com muitos moradores, e sabe qual a memória que existe do velho Ideal. “O que estamos a tentar fazer é pegar numa memória que está em muitos lisboetas e torná-la outra vez numa coisa viva, tirando partido do melhor que aqui se encontrou: a forma do espaço da sala de cinema, e alguns dos revestimentos, porque o resto estava destruído”, afirma o arquitecto. (Jornal Público)

terça-feira, 10 de junho de 2014

Google Cultural Institute lança colecção de Street Art no seu arquivo de arte online.


A Google Cultural Institute, um arquivo online de exposições e colecções de todo o mundo, lançou esta terça-feira uma colecção de Arte Urbana que conta, em Portugal, com o apoio da Galeria de Arte Urbana de Lisboa.
Desta colecção faz parte o mural da rua das Murtas, em Lisboa, Rostos do Muro Azul, resultado de uma parceria da Google com a Galeria de Arte Urbana, refere um comunicado hoje divulgado.
 Promovido por esta galeria, em parceria com o Hospital Psiquiátrico de Lisboa, o projecto Rostos do Muro Azul continua a animar a rua das Murtas, em Lisboa, e estará disponível para todo o mundo através do Street Art Project.
Considerado um ícone da arte urbana na capital portuguesa, o mural é “uma apaixonante viagem por mais de um quilómetro de pinturas que têm o azul como cor dominante”.
Em Novembro último, este mural acolheu a edição do Writer’s Delight Burnersde 2013, organizado pela Dedicated Store Lisboa, com um trabalho colectivo de intervenientes alemães e nacionais. Mais recentemente, em Março passado, 29 artistas nacionais e internacionais intervencionaram 54 novas pinturas, naquela que é a sétima fase do projecto Rostos do Muro Azul.
“Neste arquivo de arte online será possível analisar com detalhe todas as obras de arte, conhecer melhor as origens deste movimento urbano e ainda descobrir como se está a utilizar esta técnica para revitalizar as cidades, por exemplo na Polónia”, refere uma nota informativa.
O Street Art Project possibilita também aos seus utilizadores uma visita guiada às origens do movimento graffiti em Nova Iorque nos anos 90. Para quem deseja ir até ao outro lado do oceano, é possível ainda comparar a natureza global da arte urbana produzida no México, onde existe uma grande tradição de pintura mural.
Permite igualmente conhecer os primeiros passos no contexto artístico das Filipinas, onde a arte urbana começa agora a florescer.
Street Art Project é uma iniciativa que congrega mais de 5 mil exemplares de obras de arte urbana de vários países e que tem o objectivo de conservar digitalmente as expressões artísticas que geralmente acabam por desaparecer nas cidades de todo o mundo.
A iniciativa reúne uma grande variedade de estilos e inspirações urbanas e algumas das obras que podem ser consultadas neste arquivo online da Google Cultural Institute correspondem a “autênticas formas de expressão e activismo político e social” em épocas turbulentas da história dos vários países que fazem parte do projecto.
Alguns exemplos são os trabalhos do português Alexandre Farto - mais conhecido por Vhils -, o surrealismo dos brasileiros Os Gémeos, ou ainda os retratos fotográficos a grande escala do francês JR.

O Street Art Project é a primeira iniciativa de captura digital de imagens de arte urbana e representa a união entre aquela que é considerada a plataforma online do presente, a Google, e aquela que é a expressão artística da actualidade, a arte urbana.  (Jornal Público – 10.06.2014)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Isabel Abreu lê Madame Bovary, de Gustav Flaubert.

(ver video em: http://www.publico.pt/multimedia/video/isabel-abreu-20140530-120318)

Isabel Abreu, actriz, descobriu que, aos 36 anos, é melhor leitora de Madame Bovary do que se tivesse lido o romance de Gustave Flaubert na altura em que lhe diziam que era a certa. Entre 7 e 15 de Junho, no teatro São Luiz, em Lisboa, Isabel Abreu é uma das intérpretes da encenação que Tiago Rodrigues criou a partir do romance e do julgamento por obscenidade que se seguiu à sua publicação, em 1857. (Jornal Público)

domingo, 1 de junho de 2014

Os livros do esquecimento.


Entre tudo o que se editou em Portugal nos últimos anos, são muitos os títulos que se perderam na memória, em fundos de catálogo, nos becos sem saída da distribuição. Mais do que as novidades, as grandes obras esquecidas são os achados de cada Feira do Livro. Estas 24 correspondem a uma escolha tão subjectiva quanto possível - acrescente, se puder.
Não se fale de um livro e ele morre. É uma frase repetida por editores sobre um silêncio que condena, que não deixa vestígios para a construção de uma memória e para a sua capacidade de ser alimentada. Sem esse discurso sobre, o leitor não pode fazer como Tamina, a personagem de Milan Kundera que vivia com uma missão muito pessoal: trabalhar o cérebro de modo a não esquecer o rosto do marido. Ela diz da memória pessoal e da dos homens enquanto colectivo.
Tamina serviu a Kundera para trabalhar, entre outros, o tema do esquecimento na Checoslováquia invadida pela União Soviética. Nos anos que se seguiram a esse Verão de 1968, a sociedade programou-se para esquecer o passado. Tamina, a mulher a quem mataram o marido, decidiu resistir à ordem para apagar da memória, anotando todos os vestígios de uma existência ameaçada de maneira a impedi-la de se esfumar — é um dos sete contos que compõem O Livro do Riso e do Esquecimento, ensaio literário sobre a memória de um autor muito valorizado nas décadas de 70 e 80 que passou a ser visto com alguma desconfiança pela crítica quando se tornou um best-seller. Os seus livros vendem em todo o mundo, traduzidos, reedita- dos, permitindo-lhe uma confortável vida de ex-exilado político em Paris.
Passados 45 anos desde que se estreou com Risíveis Amores, em 1969, Milan Kundera recupera prestígio e apontam-no como candidato a Nobel talvez num dos momentos menos criativos da sua vida literária. Está longe de ser um autor esquecido. Nas livrarias há sempre um exemplar de Kundera. Ele é, em simultâneo, best-seller e long-seller, um escritor sempre procurado cujas vendas disparam a cada novidade. A memória é dos que ficam, como ele. Mas arrisque-se outra lista — arrisque-se o exercício de procurar os que inexplicavelmente apareceram e desapareceram sem deixar rasto embora tivessem tudo para fazer parte da tal memória que Tamina fez por não perder porque era tudo o que tinha. Um nome, dez, 15, 50... autores e títulos que passaram ao lado da atenção de lei- tores, livreiros e muitas vezes da crítica. Foram apostas de editores que escolheram publicá-los seguindo um único critério, a qualidade, uma valorização subjectiva que não escapa ilesa às regras do mercado — foram apenas o que foram, e não volumes à espera de um dia melhor ou da simples destruição.
Tamina, a personagem-metáfora que luta contra o esquecimento no livro de Kundera, é aqui uma espé- cie de guia para recuperar livros que se perderam na memória recente mas ainda têm uma presença física, ainda que no limiar da invisibilida- de. Mais do que as novidades, esses “livros perdidos”, os condenados pela falta de um discurso que produza memória colectiva, protagonizam cada edição da Feira do Livro — e a de Lisboa começou ontem. São eles os grandes achados e só estão vivos porque alguém os leu e não os esqueceu.
A possibilidade de uma lista
E pode ser por causa de uma frase. Um papel verde-alface a marcar a página fechada: “Em italiano exis- tem duas palavras sono e sonho, enquanto o napolitano tem uma só, suonno.” Original de 2001, Montedidio foi editado pela primeira vez em Portugal pela Ambar, saiu de circulação e voltou reeditado pela Bertrand em 2012. É considerado um dos grande livros contemporâneos em Itália. Escrito por Erri di Lucca (Nápoles, 1950), poeta, tradutor, revolucionário, operário, autor múltiplo, é o relato do quotidiano de um rapaz de 13 anos, na- politano como o escritor, a quem o mestre Errico ensina como quem ensina um ofício que cada dia é curto, como “uma dentada” — esse quotidiano em que o rapaz aprende a palavra ammor, com consoante dobrada, e a querer fazer voar um pedaço de madeira. A escrita é depurada, os capítulos breves, cada palavra medida porque “neste bair- ro de vielas chamado Montedidio se se quiser cuspir para o chão não se encontra um espaço livre entre um pé e o outro”. O aplauso em Itália ditou-lhe traduções, mas editar é quase sempre uma aposta em que ganhar e perder são hipóteses iguais à partida.
Numa geografia próxima está A Ilha dos Demónios, da catalã Carmen Laforet (1921-2004). A Cavalo de Ferro editou-o em 2009, era o livro que se seguia ao romance que a tinha apresentado como uma das grandes escritoras espanholas do século XX: Nada, com o qual venceu o prémio Nadal, em 1994. Em A Ilha dos Demónios, publicado oito anos depois do sucesso inicial, Laforet recupera o espírito da jovem protagonista de Nada, que a crítica chegou a comparar a Holden Caulfield, o rapaz de À Espera no Centeio, de J.D. Salinger. 
Desta vez, a acção decorre em 1938, ano de mudança na vida de Marta Camino, na passagem da adolescência para a idade adulta. É Las Palmas, nas Canárias, em ambiente de Guerra Civil, numa família entre o exílio e o trauma. O tempo entre Nada e este A Ilha dos Demónios foi precioso para confirmar o talento de Laforet. A insegurança que sentiu entre um livro e o outro passou a fazer parte da sua biografia e a acrescentar-lhe interesse.
Os títulos sucedem-se, o ritmo é sôfrego, tanto tem sido o esquecimento. São dezenas de livros perdidos mas “imperdíveis”. Mede-se o exagero do qualificativo enquanto se acrescentam títulos à lista à custa da supressão de outros. Pede-se ajuda a editores, críticos, tradutores, leitores. Bibliófilos. Mas são os editores que melhor sabem da relação entre o que se publica e o que se vende, do que sai sem quase ser visto. Enviam listas mais ou menos extensas. Não se repetem e recomendam-se uns aos outros. Nomeiam ficção e poesia entre os livros mais esquecidos a encontrar no Parque Eduardo VII. Por exemplo: em 2005, passou discreto um dos grandes poemas épicos numa tradução a reter, de José Lino Grunewald. Falamos de Os Cantos, de Ezra Pound, editado pela mesma Assírio & Alvim que tem colocado no mercado muita da poesia que se publicou nas últimas décadas em Portugal. Não há editor que a propósito da Feira do Livro não fale dos saldos da Assírio — como dos da Relógio D’Água, da Cavalo de Ferro ou da Cotovia... Os clássicos, lembram. Mas esses são os que sempre vão vendendo. Outro exemplo: O Bom Soldado Svejk, do checo Jaroslav Hasek (1883-1903), sátira que desmonta de forma corrosiva o poder de um Estado. O original foi publicado em 1929 e a Tinta-da- China traduziu-o na íntegra, pela primeira vez, em 2012. Em português do Brasil, um clássico menos conhecido mas a merecer lugar de honra entre os grandes romances a não esquecer: A Menina Morta, de Cornélio Penna (1896-1958). Publicado em 2006 na colecção de Literatura Brasileira coordenada por Abel Barros Baptista para a Cotovia, é um marco pela originalidade, pela elegância da escrita e pelo modo como se dedicou a um universo mais pessoal num tempo de agitação social.
Todas as geografias
A passagem para a senhora que se segue é intuitiva. Eudora Welty (1909-2001), uma das grandes prosadoras da América, de quem a Antígona publicou, em 2013, As Maçãs Douradas (1949), um prodigioso livro de contos que guarda o que de mais precioso e cru existe no imaginário do interior sul do Estados Uni- dos. Welty é com frequência nomeada como inspiração de muitos escritores que tentam captar-lhe a simplicidade aparente que vem de um talento raro de observadora do quotidiano e do seu olho clínico. O outro, a nu, é o seu tópico. É exímia em captar-lhe a gíria e o inconfessável, exercício de que resultam livros de grande riqueza linguística e densidade humana. O feito de verosimilhança, por mais desconcertante, acontece. Um pouco em contraste com a alucinante escrita do argentino Roberto Arlt e Os Sete Loucos. Não consta dos tops este homem nascido em Buenos Aires, em 1900, com a história de Erdosain, um cientista perdido nas suas convicções e imerso numa espiral de mal-entendidos que serviu ao autor argentino para ensaiar, num estilo surreal, uma nociva concepção de sociedade e para romper com “os bons modos da época” e do que tinha sido até então a sua própria escrita entre a autobiografia e a escola prussiana, a origem da sua família. “Aquilo a que chamamos loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros”, lê-se, e é bom que haja caneta à mão para que a mente retenha este livro de 1929, editado em português em 2003, pela Cavalo de Ferro.
Sabe-se que a subversão é um dos caminhos para permanecer ou ser- se esquecido. O egípcio radicado em França Albert Cossery (1913-2008) não produziu muito mas nenhum dos seus oito livros merece se não um lugar de destaque em qualquer estante. São dele Os Homens Esquecidos de Deus e Mendigos e Altivos, ambos editados pela Antígona. Um modo de escrever em que o escárnio convive com grandes descrições do que pode ser a maior miséria humana, nunca incompatíveis com o riso. Coincide na estante com Os Javaneses, romance de Jean Malaquais (1908-1998), francês nascido polaco, vencedor do prémio Renaudot em 1939. Poderia ter como subtítulo os “homens também esquecidos por Deus” — no caso, os trabalhadores de uma mina na ilha de Java, na década de 30. Malaquais escreve sobre viver na exclusão, no limite de meios e de linguagem, criando códigos de sobrevivência — e assim expõe alguns dos seus ideais políticos, próximos do trotskismo, facto que não compromete em nada a qualidade literária do livro.
Está feita a ponte para o Leste. A Vida e o Sonho de Sukahanov revelou Olga Grushnin (Moscovo, 1971) em mais um exemplo, agora actual, de que ideologia e boa literatura são conjugáveis. Sukahanov é um homem de mais de 50 anos satisfeito com as suas conquistas pessoais até que o Kremlin muda de comando. Não é tanto a acção o que conta, mas o modo como a escritora consegue dar densidade ao que poderia ser uma existência banal de mais um ser humano comprometido com o seu passado. A Bizâncio publicou este romance em 2007. O que é feito dele?
A lista tenta ser abrangente nas suas limitações. Clássicos, contemporâneos, geografias diversas. A norte, o norueguês Jon Fosse (n. 1959), com É a Aless, novela de um autor conhecido sobretudo pela sua dramaturgia. Não chega a cem páginas, mas é como imergir na mente de alguém e acompanhar as suas hesitações, os seus impulsos, percebendo nessa cadência única uma melodia universal. A Cotovia publicou-o em 2008. O vizinho do lado é sueco. Chama-se Torgny Lindgren (n. 1938) e escreveu um romance sobre o compromisso de um jorna- lista com a realidade. A acção arranca em 1948, ano de um surto de tu- berculose numa zona inóspita da Suécia onde o correspondente de um pequeno jornal é acusado de inventar um périplo gastronómico muito pouco conveniente. O romance chama-se A Última Receita na tradução portuguesa, também de 2008, da Cavalo de Ferro.

Lembrar os imerecidamente esquecidos e ter de não falar da maioria é um exercício doloroso. Na ficção de Kundera, Tamina tinha um rosto para não apagar e ele era tudo. Não é o caso desta lista em aberto. Entre os grandes livros esquecidos das livrarias, dos leitores, dos jornais, há muitos em português. A escolha vai para Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín, de Teresa Veiga, pseudónimo de uma autora nascida em Lisboa em 1945 que prefere não falar dos livros que escreve. Não há um rosto, apenas nomes de personagens contadas entre silêncios neste livro de contos — que talvez seja oportuno neste momento em que os leitores parecem estar a reconciliar- se com o género. (Jornal Público)