domingo, 30 de novembro de 2014

O dia em que o cante saltou do Alentejo para a eternidade.


Há 21 meses que trabalhavam na candidatura e ontem foi o dia de ouvir o "sim". Com lágrimas, nervosismo e louvores
"A minha senhora ligou-me logo a dizer que já tinham rebentado os foguetes", diz Carlos Paraíba, ensaiador do grupo coral da Casa do Povo de Serpa, ao telefone, de Paris, horas depois de saber que o cante alentejano já faz parte da lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade. A mulher estava em Serpa, cidade que promoveu a candidatura do género musical. A confirmação chegou ontem, pouco passava das 10.00 (mais uma hora em França). À emoção do momento juntaram-se as lágrimas dos 22 homens que se apresentaram ao Comité Intergovernamental da UNESCO e cantaram Alentejo Alentejopara mais de 100 delegações internacionais. "Estava tudo muito comovido, nas era a chorar de alegria", explica.
Carlos Arruda, 28 anos, lançou a moda, na qualidade de ponto do grupo coral da Casa do Povo de Serpa. "Foi um misto de sentimentos", conta." Orgulho, alegria, sentido de responsabilidade, um pouco de nervosismo...". É um dos mais jovens elementos, e já canta desde os 13 anos, caso raro entre os cantadores.

Ele e a comitiva deveriam voltar a Portugal da mesma maneira que chegaram a Paris na segunda-feira: de autocarro. No entanto, já depois de terem recebido a confirmação da Unesco, a TAP ofereceu a passagem de regresso aos membros do grupo e responsáveis da candidatura. E a primeira atuação aconteceu em Orly antes de embarcar no Voo do Cante, nome dado à viagem. (Diário de Notícias)

domingo, 23 de novembro de 2014

Volta à História de Portugal com Fernando Rosas.


O século XX português, entre o Regicídio (1908) e o 25 de Abril de 1974, visto a partir da Rua do Arsenal, é o tema do episódio inaugural da série televisiva História a História, que este domingo começa a ser exibido na RTP Internacional. O autor é Fernando Rosas, que nesta sua volta a Portugal diz sentir-se bem mais confortável do que quando correu o país em campanhas políticas e eleitorais.
Uma camisa (verde, nesse dia) debaixo dos tradicionais suspensórios (que também vão variando de cor), o gesto largo e expressivo, a palavra fácil e clara de professor, o à-vontade bem conhecido de tantas presenças televisivas… É com esta imagem que, a partir deste domingo, o historiador Fernando Rosas (n. Lisboa, 1946) vai entrar nas nossas casas com a série História a História. Numa primeira fase, o conjunto de 13 episódios vai ser exibido, semanalmente, no horário nobre da RTP Internacional, e na RTP África (30 de Novembro); em Janeiro entrará também na grelha da RTP nacional.
“Em cada episódio vamos contar uma história a partir de um lugar, de uma actividade, de uma personagem ou de um conjunto delas”, explica Fernando Rosas na apresentação que faz ao PÚBLICO, no meio de mais um dia de filmagens, em Ílhavo, desta sua experiência nova no formato documental televisivo.
O primeiro episódio tem por título Rua do Arsenal, uma História Política do Século XX. Com base nesta rua da Baixa de Lisboa nascida da reconstrução pombalina, Fernando Rosas conta a história do século XX português, desde o Regicídio de 1908 até ao 25 de Abril de 1974, passando pela implantação da República, pelas revoltas, revoluções e episódios mais ou menos sangrentos das primeiras décadas do século, e também pela consolidação do Estado Novo e pelos discursos de Salazar na Sala do Risco do Arsenal. “É impressionante como uma simples rua foi palco de tantos acontecimentos, e tão marcantes, da nossa história contemporânea”, realça.
História a História resulta de um convite da RTP, a que o historiador “não podia dizer que não”. Elencou 13 temas, 13 histórias da História de Portugal, com a “preocupação de a aproximar do grande público”.
A meio da última semana, Fernando Rosas e a sua pequena equipa de sete pessoas – dirigida pelo jovem produtor (GardenFilms) e realizador Bruno Morais Cabral – percorriam numa autocaravana as margens da Ria de Aveiro a registar imagens e testemunhos sobre a pesca do bacalhau. O PÚBLICO acompanhou o segundo de dois dias de rodagem das imagens actuais que farão o nono episódio da série, Faina Maior, a pesca do bacalhau. Primeiro, no interior do arrastão “Santo André” (construído na Holanda, em 1948), que no antigo Forte da Barra (agora Jardim Oudinot) perpetua a memória dessa faina mítica como uma extensão do Museu Marítimo de Ílhavo; depois, já dentro do museu, frente ao aquário de bacalhaus – “um dos peixes mais estúpidos que há, por isso fácil de pescar”, comentava –, Fernando Rosas evoca, explica e desmonta o processo e o imaginário associado a esta faina que ocupa um lugar à parte na história do país. “Deixando de parte a questão de saber quem é que chegou primeiro à Terra Nova, a verdade é que Portugal estava lá já no século XVI, com os seus barcos de pesca”, diz o apresentador percorrendo o velho barco, agora “envernizado” a azul-e-branco para objecto de museu.
Na véspera, o cenário para esta viagem às memórias da faina tinha sido o belíssimo lugre “Santa Manuela”, no interior do museu de Ílhavo. “Havia uma mística ideológica criada pelo Estado Novo em volta da pesca do bacalhau, que incluía, por exemplo, um Bispo do Mar que benzia os barcos à partida para a Terra Nova” – explica-nos o historiador –, “e que era apresentada como a continuação da gesta dos Descobrimentos”. As razões que tornaram o “projecto do bacalhau" totalmente anacrónico ainda durante o governo de Salazar, e as mudanças que a liberalização das pescas, nos anos 60, e depois o 25 de Abril trouxeram ao sector são também elucidados pelo cicerone deHistória a História – que para este episódio teve como consultor Álvaro Garrido, director do Museu Marítimo de Ílhavo e um grande especialista do tema.
 Filmar com drones
Além de entrevistas e testemunhos, cada episódio da série é feito com filmes de arquivo, fotografias e outros documentos, além das imagens filmadas agora nos cenários relacionados com cada tema – com recurso, inclusive, adrones, como se poderá verificar nas vistas aéreas da Rua do Arsenal, no primeiro episódio. “Mesmo se falamos de História, o nosso desafio é produzir um conteúdo contemporâneo, dinâmico, que capte a atenção dos espectadores”, diz Bruno Morais Cabral. O documentarista formado na Escola de Teatro e Cinema de Lisboa e autor de Praxis (melhor curta-metragem do DocLisboa de 2011) assume, no entanto, que a presença de Fernando Rosas é o principal trunfo do programa.

É, de facto, notório o à-vontade com que o político e ex-deputado do Bloco de Esquerda enfrenta a câmara. O desafio maior, nas filmagens na Ria de Aveiro, era mesmo manter-se penteado perante o vento forte que soprava nessa manhã de sol. Recorrendo às tradicionais fichas de professor, que a anotadora Raquel Bagulho lhe ia passando sempre que necessário, Fernando Rosas assume a câmara de televisão como uma extensão da sua profissão. “Sou professor, gosto de comunicar”, diz. Essa facilidade faz lembrar a presença televisiva de um José Hermano Saraiva. Uma associação que Fernando Rosas aceita, de resto. “O Hermano Saraiva era um magnífico comunicador, um homem com uma telegenia invulgar”, diz, assumindo que visionou vários dos seus programas, e outros do género, para “aprender, e para perceber como é que se tem feito História na televisão”.  (Jornal Público)

domingo, 16 de novembro de 2014

Senhoras e senhores, apresentamo-vos o "padeiro dos livros".


Nove mil livros e 30 anos depois, Alberto Casiraghi, poeta, pintor, músico, construtor de violinos e impressor, tem a sua primeira exposição em Portugal. Chama-se "9000 Formas da Felicidade: as edições Pulcinoelefante".

Uma gravura baseada no famoso quadro de Goya, "Três de Maio de 1808 em Madrid", assinada por Luciano Ragozzino. Fotografias de Marylin Monroe coladas sobre uma mão de papel e uma fotografia também da atriz, provavelmente recortada de um jornal ou revista, com números pintados sobre o papel. Um poema de Rainer Maria Rilke, o poeta alemão, escrito em italiano. Três fotografias de Alda Merini (1931-2009), a escritora italiana que teve a admiração de artistas como Pasolini, Salvatore Quasimodo e Giorgio Manganelli, e foi vencedora em 2003 do Premio Librex Montale, que reconhece poetas italianos contemporâneos. É ela, aliás, que assina alguns dos livros expostos (mas já lá vamos).
Mais à frente, entra-se no chamado "Núcleo: Alberto em Portugal". Uma fotografia a preto e branco de Manuel Alegre, vestido de fato. E um desenho de um homem deitado com uma monumental letra "M" junto à sua cabeça, parecendo decapitá-lo, e que segundo o programa da exposição é do livro de Alberto Pimenta, o escritor português, feito e escrito por ele. Miguel Martins, Luís Manuel Gaspar, Manuel de Freitas. Outros nomes da poesia portuguesa contemporânea que aparecem destacados. O 91 da exposição é de Vasco Graça Moura, é de 2013, e tem uma dedicatória sua na capa que diz assim: "Na verdade, o poema é um ruído modelado de gente".
Chama-se "9000 Formas de Felicidade: as edições Pulcinoelefante", é dedicada a Alberto Casiraghi, poeta, pintor, músico, construtor de violinos e impressor, e inaugurou no final de outubro na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, onde fica até 31 de janeiro.
É a primeira exposição em Portugal dedicada a Alberto, que prefere, no entanto, ser conhecido como o "padeiro de livros", e o "único padeiro que trabalha durante o dia". Há uma boa razão para isto: desde 1992, tem feito, em média, mais de um livro por dia. Atualmente, são mais de nove mil.
Os livros "belos e simples" do mestre Alberto
Em 1982, depois de ter sido despedido da tipografia onde trabalhava, uma grande casa em Milão que imprimia jornais, Alberto Casiraghi decidiu construir a sua própria oficina, a que deu o nome de Pulcinoelefante. Fê-lo em casa, na cidade de Osnago, em Itália, onde nasceu. Fala-se muito dessa tarde ventosa e de um primeiro livro dado à estampa nesse dia: "Una Lirica. Una Immagine", de um escritor chamado Marco Carnà. No ano seguinte, 1983, foram lançados mais quatro livros, três com textos do próprio Casiraghi (assinados, não sabemos, se por ele, se por um dos seus três pseudónimos) e o outro da autoria de Gaetano Neri, também ilustrados por Carnà, em conjunto com Pierluigi Puliti e Gianni Maura. Em 1984, sete, e no ano seguinte, nove. Ao fim dos primeiros dez anos, estavam feitos 236 livros, ou 236 "pulcinos", nome por que são chamados.
Mas o que são, afinal, os "pulcinos"? A descrição oficial diz assim: são quatro ou seis folhas de papel Hahnemühle, tamanho A4, dobradas em A5. Contêm um aforismo ou um pequeno poema impresso em carateres móveis, e uma ilustração, que tanto pode ser uma impressão digital dos desenhos de Alberto, uma xilografia, águas-fortes, litografias, fotografias, colagens, desenhos e pinturas com todas as técnicas, ready-made, esculturas, entre outras intervenções. As tiragens vão de 15 exemplares a 30 ou 35, numerados sequencialmente.
A descrição não-oficial é esta que nos traz Catarina Figueiredo Cardoso, comissária da exposição, e responsável por outros projectos anteriores na área da edição independente e livros de artista. Distingue nos "pulcinos" a "beleza e a aparente simplicidade". Do ponto de vista tipográfico, assegura que são "impecavelmente bem feitos". "O que torna o Alberto diferente é a consistência da sua prática e a mestria com que a utiliza. Há muitos problemas na utilização dos tipos móveis: gastam-se, partem-se, as máquinas desafinam e avariam, todo o material envolvido é caro e a sua utilização é difícil e implica muita prática. Ora o Alberto tem tudo: foi tipógrafo de tarimba, tem imensos tipos, tem a máquina e sabe concertá-la se for preciso. É por isso que ele se distingue dos restantes impressores".

A técnica que nasceu na China antes de Cristo
O primeiro sistema de impressão a partir de tipos móveis (letras, símbolos e sinais de pontuação individuais), feito em porcelana chinesa, é atribuído a Bi Sheng (990-1051 AD), e terá sido criado por volta de 1040 A.D., na China. Quando, cerca de 200 anos depois, a técnica começou a ser usada na Coreia, os tipos móveis passaram a ser feitos em metal. "Jikji" (1377), ou "Antologia de ensinamentos zen pelos grandes sacerdotes budistas", documento budista coreano, é o mais antigo livro imprimido com o uso desta técnica, título que a UNESCO confirmou em 2001, tendo incluído o livro no programa "Memory of the World", destinado a preservar documentos e arquivos de grande valor histórico.
Por volta de 1450, os tipos móveis voltariam à mó de cima (eram caros e exigiam muita mão-de-obra e isso teve consequências), com a impressão da Bíblia por Johannes Gutenberg, na Europa, a partir de um sistema que o próprio inventou, e que superava em larga medida os antigos modelos. Como se passou para a impressão em línguas europeias (número mais limitado de carateres), a técnica tornou-se rentável e foi, dito de uma forma abreviada, um sucesso. Mais tarde, já no século XIX, com a invenção da composição mecânica e seus sucessores, acabaria por entrar em declínio.

Cabras, coelhas e galinhas, e máquinas grandalhonas
Numa das fotografias dos livros em exposição, Alberto surge acompanhado de uma cabra. Ao vê-la, lembramo-nos das imagens do editor e tipógrafo, arrumadas em vídeos (no youtube), que nos trazem essa outra realidade de um quintal cheio de cabras e coelhos e galinhas, e uma casa aparentemente pequena cheia de máquinas grandalhonas que já ninguém parece saber ao certo para que servem, e livros, muitos livros, atrás das portas de vidro dos armários altos ou ali mesmo à mão de semear.
É nessa casa que Alberto continua a receber visitas, artistas, poetas e ilustradores, que ali vão "para lhe ditarem os textos e ajudarem a fazer os livros, cortar o papel e coser as páginas", explica Catarina. E foi também nessa casa que recebeu a escritora italiana de que falávamos, Alda Merini, amiga e colaboradora. Catorze dos 110 livros expostos são dela. Parece pouco, mas há outra história por detrás disto, que podemos arriscar, embora com palavras que não são nossas, contar assim: "A amizade e consequente colaboração com Alda Merini conduziram ao aumento alucinante no número de livros produzidos, e à enorme projeção de Alberto e da sua editora em Itália, nos Estados Unidos e no Japão". A escritora deu, ainda segundo essas páginas que acompanham a exposição, "uma dimensão inesperada à Pulcinoelefante".
O mestre Alberto em Portugal
Em 2013, Alberto vinha pela primeira vez a Portugal, a convite de Catarina. "Achei importante dar a conhecer aos meus amigos portugueses que se dedicam à edição a obra de um dos expoentes da arte da composição tipográfica com tipos móveis".
Nesse ano, fez um workshop no Homem do Saco, um dos ateliers que, segundo Catarina, continua a dedicar-se à técnica de impressão em tipos móveis. A outra é a Oficina do Cego, também em Lisboa. Desse workshop resultaram quatro "pulcinos" sob a supervisão direta de Alberto, que deram aos tipógrafos e artistas portugueses envolvidos (alguns têm agora expostos os livros que fizeram) a motivação necessária para, a partir daí, dedicarem-se à "criação de edições artísticas inovadores e imaginativas que os singularizam no panorama da edição independente."
Mas a ligação de Alberto a Portugal é bem mais antiga. Em 1993, fazia o primeiro livro de um escritor português. É lançar um palpite e acertar, senão à primeira, pelo menos à segunda. Sim, foi mesmo de Fernando Pessoa, mas esse não está entre os que viajaram de Itália para Portugal. Vai ter de ficar para a próxima.

domingo, 9 de novembro de 2014

Romance de estreia de Ana Margarida de Carvalho ganha Grande Prémio da APE.


História que cruza a geração dos resistentes ao fascismo com a que cresceu em democracia, Que Importa a Fúria do Mar foi eleito por unanimidade entre mais de uma centena de romances.
Que Importa a Fúria do Mar, de Ana Margarida de Carvalho, venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE), tendo sido escolhido por unanimidade, entre os 107 livros admitidos a concurso, por um júri composto por José Correia Tavares, Annabela Rita, Cândido Oliveira Martins, José Manuel de Vasconcelos, Teresa Carvalho e Vergílio Alberto Vieira.
Romance de estreia da autora, a acção de Que Importa a Fúria do Mar(Teorema, 2013) inicia-se em 1934, após a célebre revolta operária de 18 Janeiro desse ano, na Marinha Grande, e parte de uma cena em que um homem lança um maço de cartas da janela de um comboio, esperando que alguém as faça chegar à mulher para quem foram escritas. O homem, que se chama Joaquim, foi detido na sequência da revolta de 1934 e irá integrar a leva de prisioneiros políticos que inaugura o campo do Tarrafal, em Cabo Verde.
Muitos anos depois, Joaquim será entrevistado por uma jornalista, Eugénia, na qual se adivinha um alter-ego da autora, que trabalha actualmente na revista Visão, e que já tinha uma longa carreira na imprensa (reconhecida com vários prémios) quando se aventurou a escrever o seu primeiro romance. Após ter estado entre os finalistas do prémio LeYa, Que Importa a Fúria do Mar ganhou agora o da APE, no valor de 15 mil euros, um prémio estreado em 1982 com A Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, e entre cujos anteriores vencedores se conta também o pai da Ana Margarida Carvalho, o romancista Mário de Carvalho, premiado em 1994 pelo romanceUm Deus Passeando pela Brisa da Tarde.   
Entrevistada para o PÚBLICO por Isabel Lucas, por ocasião do lançamento de Que Importa a Fúria do Mar, um livro que cruza a geração dos resistentes ao fascismo com a que já iniciou a sua vida adulta em democracia, Ana Margarida Carvalho falava com entusiasmo do prazer que fora experimentar a “imensa liberdade na forma” que a ficção permite, por contraste com a escrita jornalística, mas mostrava também um desarmante, e hoje cada vez mais raro, espírito autocrítico, afirmando, por exemplo, que ficava contente se as pessoas gostavam do livro, mas que lhe parecia “cheio de imperfeições”, e que evitava relê-lo para não ver alguns “erros de principiante” que achava ter feito. E quantos escritores confessariam como ela, sem rebuço, que gostam de dicionários e escrevem com eles por perto? A sorte de autora foi não ter sido chamada a julgar em causa própria, ou teria ganho na mesma o prémio da APE, mas não decerto por unanimidade.
Prémios Pen Clube
Também o Pen ClubePortuguês anunciou esta quinta-feira os prémios PEN para obras publicadas em 2013, cujos júris optaram por escolher dois vencedores ex aequo em todas as categorias à excepção da de Ensaio, conquistada pelo livro Para que Serve a História? (Tinta-da-China), do historiador Diogo Ramada Curto, também crítico do PÚBLICO. Gastão Cruz e Golgona Anghel dividiram o prémio de poesia, respectivamente com Fogo(Assírio & Alvim) e Como Uma Flor de Plástico na Montra de Um Talho(Assírio & Alvim), e o de narrativa foi atribuído ex aequo a  Ana Luísa Amaral, por Ara (Sextante) e Bruno Vieira Amaral, pelo romance As Primeiras Coisas(Quetzal). Também na categoria de primeiras obras, o prémio foi dividido, consagrando Ensaio sobre o Pensamento Estético de Adorno (Vendaval), de João Pedro Cachopo, e o livro de poemas Cinza (Tinta da China), de Rosa Oliveira.
João David Pinto-Correia, Fernando Martinho e Pedro Eiras compuseram o júri de poesia, Maria João Cantinho, Paula Morão e Nuno Crespo o de ensaio, e o de narrativa incluiu Teresa Salema, Vítor Viçoso, Filipa Melo. O prémio para primeiras obras é atribuído por elementos dos júris das categorias anteriores. (Jornal Público)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Até ao infinito e mais além.



Quando é que, enquanto espectadores, deixámos de ter a capacidade de nos maravilhar, de ver as coisas sem segundas intenções, sem pensarmos duas vezes se “gostamos” se “não gostamos”, se “seguimos” ou se “amigamos”? Quando é que perdemos aquele olhar, arregalado, deslumbrado, que tivemos perante o desconhecido, o nunca visto? Será que é ainda sequer possível recuperá-lo?
É a pergunta que faz Christopher Nolan em Interstellar e, para lá de toda e qualquer opinião que se possa ter sobre o filme, é essa a chave que “abre” o “hiper-cubo” de leituras que ele permite. Não é por acaso que a viagem interestelar que lhe está no centro é uma “última oportunidade” para uma Terra moribunda, que parte em direcção de um território onde só se chega transgredindo as leis tradicionais da física. Através disso, revela-se que a “suspensão da descrença” que o cinema enquanto “montagem de atracções” começou por ser é o verdadeiro tema de Interstellar. 
Suspender, por um momento que seja, a modorra da realidade quotidiana, cinzenta, condenada; fazer um convite à viagem, ao sonho, à aventura. Resistir, de algum modo, aos avanços do realismo (e dos neo-realismos) que nos remetem constantemente para o mundo lá fora; reafirmar a fé no espectáculo, partir à aventura como os gloriosos loucos que foram à procura do caminho marítimo para a Índia e, no processo, descobriram novos mundos. Mas fazê-lo sem perder de vista aquilo que nos faz humanos: dúvidas, questões, alegrias e tristezas.
A referência evidente de Interstellar é o 2001: Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick (1968) - e a partitura de Hans Zimmer, mesmo que mais sóbria do que lhe é habitual, é escandalosamente derivativa no modo como evoca constantemente a reverberação quase infinita de Assim Falava Zaratustra. O novo filme do autor de Memento (2000) e O Cavaleiro das Trevas (2008) parece querer alargar a todo um filme a meia-hora final de 2001, a viagem para lá da “porta das estrelas” que desintegrava as leis do tempo e do espaço em direcção ao in-imaginável – mas, no processo, está também a entrar pela transcendência mística da Árvore da Vida de Terrence Malick (2011), onde o princípio e o fim, o passado e o futuro, eram entendidos como um único todo sensorial.
É aqui que começamos a atolar-nos neste filme de desmedida ambição, que parece espelhar na Terra do futuro transformada num imenso dust bowl as próprias contradições do mundo em que foi concebido. Nolan quer fazer umblockbuster com cabeça num momento em que Hollywood só parece ter olhos para super-heróis e franchises adolescentes. Arrastou dois dos seis grandes estúdios para um filme caríssimo que desafia a massificação do marketing e não se resume em duas linhas. Quer medir-se com os cineastas visionários que Hollywood elevou a mestres - Kubrick, Cameron, Spielberg - numa era em que esse tipo de “fogachos” são desencorajados pelo sistema. E, sobretudo: na era do soundbyte, do telemóvel, do SMS, da desmultiplicação do espectro de atenção, Nolan exige ao espectador três horas de atenção indivisa.
Mas a verdade é que nem por isso Nolan deixa de revelar o calculismo metódico de engenheiro mecânico da sua obra: ao contrário das gélidas simetrias Kubrickianas que deixavam muito em aberto, Interstellar não deixa ponta solta por atar. Sabe que depois de levar o espectador “ao infinito e mais além” tem que lhe dar âncoras ou lemes que lhe permitam reorientar-se. Nada em Interstellar é casual, o inexplicável não o ficará por muito tempo: se ambos são talvez o maior exemplo do que passa hoje por “cinema de prestígio” nos americanos, e partilham uma precisão quase maníaca no modo como planificam ao mínimo detalhe tudo o que acontece nos seus filmes, Nolan está no oposto de David Fincher e do seu prazer quase sádico em escarafunchar no desagradável. Com Em Parte Incerta (2014), outra mecânica de precisão subversiva produzida no interior do sistema, Fincher não hesita em mandar o espectador para casa sem lhe dar a satisfação de um final todo bem arranjadinho.
Nolan não faz nada disso; insiste na “suspensão da descrença”. Como se a frieza robótica de um 2001 onde o computador era mais humano que os tripulantes da nave Discovery não fizesse sentido sem uma fé infindável no amor como único motor de combustão possível para os maiores feitos do ser humano. O que é talvez o maior risco que o cineasta britânico corre neste épico onde a ficção científica e o drama intimista familiar são sugadas ao mesmo tempo para o interior do buraco negro por onde Matthew McConaughey e Anne Hathaway viajam para outras galáxias. Na sua tentativa de conciliar a cabeça e o coração, a ciência mais abstracta e a emoção mais humana de todas, acaba por ser do Abismo de James Cameron (1989), outro objecto fora do seu tempo mal recebido aquando da estreia, que Interstellar se aproxima.
Sem por isso perder aquilo que tornou Nolan no cineasta de estúdio mais polarizador junto da crítica: a sensação de que os seus filmes corporizam, quase sem dar por isso, os grandes debates sociais do momento. EmInterstellar, adivinham-se farpas ao desinteresse político pela ciência, ao Orwellianismo quase involuntário dos “negacionistas” que rejeitam as alterações climáticas, dos economicistas que apenas valorizam resultados, dos revisionistas que querem reescrever a história do modo que mais lhes convém. E, ao fazê-lo, remete inevitavelmente para a epopeia do programa espacial americano tal como Tom Wolfe a escreveu e Philip Kaufman a filmou nos Eleitos (1984) – e a inteireza com que McConaughey ancora Interstellartem algo do Sam Shepard desse filme.
Se vai ficar ou não na história, só o tempo o dirá. A sua ambição tolhe-o aqui e ali, eleva-o a alturas enormes para logo a seguir o fazer quase despenhar-se sob o peso das ideias que projecta. Mas confirma Christopher Nolan como um cineasta que não trabalha num vácuo autista face ao cinema, e ao mundo, à sua volta, e que quer acreditar que ainda é possível recuperar o deslumbre do nunca visto. Como não admirar essa fé?