segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Um triângulo que afinal é um quadrado.


Se for uma história de amor, "O Fim da Aventura", de Graham Greene, é uma história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma história de fé que, no fundo, é sobre o amor.
Oh, não há dúvida de que Sarah tinha outros amantes. Antes e depois de Bendrix - talvez até Dunstan, esse alto funcionário público, chefe de Henry, que não chegamos mais do que a entrever. Mas se o triângulo amoroso formado por Maurice Bendrix, Sarah Miles e o entediante marido desta, Henry, se torna a certa altura um quadrado, o quarto vértice não está ali para perder. Não podemos procurá-lo no mundo do concreto. Não podemos sequer tocar-lhe. Chamamos-lhe Deus porque é isso que ele é: o deus cristão, o deus do catolicismo, e é nas suas mãos, para desgraça de todos os demais, que Sarah coloca o coração.
A obra-prima de Graham Greene, publicada originalmente em 1951, regressa às livrarias no momento ideal, porque todos os momentos são ideais para os grandes marcos da literatura ocidental e do mundo. Traz agora a chancela da Dom Quixote, mas a mesma tradução e o mesmo prefácio com que Jorge de Sena o apresentou a Portugal, em 1953, com edição da Estúdios Cor.
Foi filmado duas vezes: a primeira em 1955, por Edward Dmytryk, com Deborah Kerr, Van Johnson e Peter Cushing nos principais papéis; e a segunda em 1999, por Neil Jordan, com Julianne Moore, Ralph Fiennes e Stephen Rea. Mas, embora a linguagem do cinema seja outra e cada obra contenha a sua integridade para lá da daquela em que se baseia, em nenhum dos casos atinge a visceralidade e - sobretudo - o dilema existencial do romance de Greene.
Na verdade, O Fim da Aventura não é uma história de amor, tanto quanto uma história de ódio. Isso mesmo declara Bendrix, logo no arranque da sua parte do jogo polifónico: "E assim é isto um memorial de ódio muito mais do que de amor." Se for uma história de amor, O Fim da Aventura é uma história de amor que, no fundo, é sobre a fé. Embora também seja uma história de fé que, no fundo, é sobre o amor.
De qualquer maneira, não tem princípio nem fim, como anunciam as magistrais palavras com que Graham Greene o abre: começa num momento que o autor escolhe arbitrariamente, ou (melhor ainda) lhe é imposto, como se uma mão lhe segurasse o braço. Porque também Deus é desprovido de origem e destino, e contar a sua história, a pobres-diabos de fraco entendimento como são os homens, exige a sempre vil convenção da técnica.
A intriga centra-se na relação clandestina entre Maurice, um escritor de razoável sucesso crítico e fracasso comercial, e Sarah, a mulher de um burocrata de que o primeiro se aproxima para preparar uma personagem do romance que tem em curso. Muito em breve, porém, deixam de ser as rotinas do funcionário público a preencher o seu dia-a-dia. Entrada em cena Sarah, arrebatadoramente bela, os amantes não tardam a consumar-se, num romance tórrido a que o blitz de Londres (1940-41) serve ao mesmo tempo de pano de fundo e de manobra de diversão.
De repente, porém, ela interrompe a relação. Maurice acabara de ficar parcialmente preso debaixo da porta de um apartamento que as bombas nazis haviam feito explodir. Ao levantar-se, atordoado, ele percebe que o amor se concluiu. E só dois anos de perda e luto depois, ao encontrar-se casualmente na rua com Henry, que lhe pede ajuda no despiste de eventuais derivas adúlteras da mulher, vem a contratar o detetive privado que fará luz, a ele e ao leitor, sobre a verdadeira natureza do fim da sua aventura.
A história é contada num mosaico de analepses e prolepses e alternando a consciência de Maurice com o diário de Sarah e fugas de diferentes perfis às interioridades de Henry, Parkis (o detetive privado) ou um certo Smythe, monstruosa figura física e dedicado prosélito ateísta, de métodos - bem vistas as coisas - não muito distintos dos dos contemporâneos vendedores do ama-te-a--ti-próprio e restantes bem-aventuranças do pós-modernismo desesperado.
Mas, se é indiscutível que constitui a sua mais bem conseguida experiência de interceção entre os muitos géneros que praticou - o romance de espionagem, o romance de entretenimento, o romance político, o romance polemista, o romance religioso -, a verdade é que nunca, nele, Graham Greene morde o seu próprio isco (quão tentador terá sido oferecer a Parkis o protagonismo de um desenlace inesperado, talvez motivado pelo amor também...), mantendo-se fiel ao plano: a impossibilidade daquele amor a partir da entrada do amante omnipotente em cena e, perante essa omnipotência, a inevitabilidade da fé, ainda que disfarçada do ódio mais demolidor e extenuante.
"Apanhei a fé como quem apanha uma doença", diz Sarah, numa carta deixada a Maurice. "Caí nos braços dela, como caíra nos do amor. Nunca amara como te amei a ti, e nunca acreditei em nada como acredito agora. Tenho a certeza. Nunca tinha tido uma certeza."
Um romance poderoso, útil para compreender a fé católica do século XXI como todas as fés antes e depois dela, e que nas edições anglo-saxónicas Greene dedica a Catherine (ou apenas "C.", no original britânico). Isto é: Lady Catherine Walston, sua afilhada e amante, e que, como Sarah Miles, em vez de deixar o marido, escolheu a santidade.

Sarah escolheu-a por amor. Talvez a realidade não tenha sido tão reconfortante. (DN – 13 Ago 2016)

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